A tal “semana de adaptação
Marcelo Tas
Todo início de ano acontece algo absolutamente revelador da relação entre filhos e pais: a tal “semana de adaptação”. Escolas investem tempo em táticas sofisticadas, muitas vezes uma verdadeira operação de guerra, para adaptar as crianças a ficar algumas horas do dia longe de seus pais.
Para quem colocou o pequenino numa creche, por exemplo, é a hora de enfrentar na prática o fato de que o mundo é maior que a bolha de segurança onde o “projeto de gente” vivia até então. Eu já passei por isso e garanto: não há dor maior que encontrar a primeira mordida de um “amiguinho” no nosso anjinho. É uma punhalada no coração.
Esse ritual de iniciação – a tal “semana de adaptação” – surge na minha mente enquanto assisto a um documentário sobre a vida selvagem na TV do hotel. Quando viajo a trabalho, quartos de hotel funcionam como cápsulas para experiências inusitadas. Quando, na minha rotina de São Paulo, teria a oportunidade de ver um documentário inteiro sobre a vida dos gnus?
O gnu – cientificamente conhecido como Connochaetes taurinus – é um bicho feio e baixinho. Tem corpo de jumento, pernas de antílope e cabeça de vaca zebu. Crina despenteada e barba rala de bode completam o animal desajeitado que, para compensar, é extremamente educado e pacífico. Os gnus vivem no sul da África, são vegetarianos e estão na base da cadeia alimentar. Ou seja, frequentemente viram banquete de leões, leopardos ou hienas. Aliás, para quem ainda não ligou o nome à pessoa, os gnus são aqueles bichos que protagonizam a famosa sequência do desenho animado O Rei Leão: o estouro da manada que, perseguida por um feroz ataque de hienas, coloca em risco a vida do pequeno Simba.
Eis a grande virtude dos gnus: eles têm espírito comunitário. Aprenderam na luta pela sobrevivência que não há salvação individual. Para se defenderem, vivem em grupos de, no mínimo, 20 indivíduos. Nos grandes deslocamentos em busca de comida, podem chegar a uma multidão de 2 mil cabeças. Como em O Rei Leão. Se um gnu adulto já é presa fácil, imagina um gnu bebê. Por isso, ao nascer, a “semana de adaptação” do gnuzinho ao cruel mundo selvagem tem que ser rápida e certeira. Mesmo na TV, é tocante ver o parto de um gnu. A mãe o faz de pé! O bebê escorrega, cai no chão, mal sente o solo e já tenta sair andando. Ainda todo melado com os líquidos uterinos, o filhote cai várias vezes em tentativas desastradas em busca do primeiro passo.
Aí entra em ação a sabedoria da mamãe gnu. Com firmeza e suavidade, ela estimula o esforço do filhote com o focinho. A senhora gnu parece saber tudo sobre a preciosa diferença entre tensão e atenção. Em vez de atuar de forma exagerada diante do filhote desajeitado, ela se limita a apoiá-lo dando cutucadas firmes e jatos de ar quente que saem de seu narigão. No superclose da TV, seu olhar parece dizer: “Mamãe tá aqui. Só que… aprender a andar sozinho é com você, pequeno monstro!”. Cinco minutos depois do parto, o filhote já caminha com suas próprias pernas e mama no peito da mãe. Em dois meses é capaz de correr pela savana junto com os adultos.
Clarice, minha filha menor, vai entrar no primeiro ano do fundamental. Vou sugerir a exibição do documentário sobre os gnus na tal “semana de adaptação” dela. Tenho certeza que, quem tem mais a aprender com os gnus sobre “adaptação” somos nós, os pais. Bom ano de estudos e aprendizado a todos.
MARCELO TAS é jornalista e comunicador de TV. Tem três filhos: Clarice, 6 anos, Miguel, 10, e Luiza, 22. É âncora do “CQC” e autor do Blog do Tas. Aceita com gratidão críticas e sugestões sobre essa coluna no e-mail: crescer@marcelotas.com.br
**Sugestão da professora Vanessa Garcia ***